Era na televisão, mostravam uma tragédia em tempo real, mostravam possíveis mortes possivelmente acontecendo. Era no Brasil, em um estádio de futebol, em um jogo de futebol. Mostravam mais uma vez, quando o caos se intensifica nas torcidas, era o que acontece de muitos tempos em tempos. Uma presença maternal (mãe e/ou avó) aponta para a tela e mostra: "Olha lá, Meu Deeeeeus, as pessoas sendo esmagadas entre si, a lá, as pessoas estão sendo pisoteadas!" O temor pela vida do outro estava condensado no ar, na casa e nos comentários do repórter. Durante tudo, fui espectadora no sentido mais pleno e literal do adjetivo, tudo começa sendo eu telespectadora do telejornal. Talvez como resultado de meu tamanho envolvimento com a cena, me transportei para o lugar, então aconteceu duas coisas: virei espectadora real e não mais de uma cena comunitária onde aparecem todos numa visão panorâmica, passei a ser espectadora de um caso particular, que envolveu não muito mais do que quatro pessoas em torno de uma. O estádio estava lotado e desde sempre a idéia de superlotação era nítida. Estranhamente o que delimitava o lugar das pessoas torcedoras do espaço fora do estádio não eram estruturas de concreto, coisas de magnitude de estádio, era uma cerca de madeira, aquelas que cercam o boi em rodeios. Estavam condensados ali contra os limites pobres de uma cerca suja e desgastada, e eu do lado de fora observando 4 deles e apesar do barulho enlouquecido de todo o estádio, conseguia ouvir tudo o que diziam e inclusive respirações - o que tornou tudo ainda mais doloroso de se ver. Como era uma situação de caos, pânico e desordem e muitos estavam sendo feridos, um dos quatro presonagens tinha batido a cabeça em algum lugar. Não cabe nem dizer que ele "bateu" a cabeça em algo, tamanha impotência e inconsciência daquele não condiz com um sujeito ativo. Teve a cabeça colidida em algo - ou por alguma coisa - e estava tonto. De maneira clara e torturante, só eu ali tinha consciência de que se tratava de algo muitíssimo sério, e de que aquele homem precisava de cuidados. É demasiadamente pouco meu entendimento de traumatismos cranianos, mas tinha uma certeza perturbadora de que ali era o caso. O homem ficou com o olhar pairando sobre o nada, parado e inconsciente, e como único indício de vida o tronco e cabeça que rodopiavam devagar em torno do eixo do corpo. Os três amigos ou talvez conhecidos olhavam para ele se perguntando e perguntando a ele o que estava acontecendo, mas o homem não falava nada e eu, espectadora, não conseguia nehum tipo de comunicação com nada e ninguém, só estava a meu alcance observar. Um dos amigos disse: "Ow, ele precisa de tomar uma água, tá bem não!" Todos concordaram e enquanto um deles tentava encontrar fonte de vida no meio do inferno, surge mais um ser miserável, em trapos carnavalescos baratos, de fora da cerca. A partir do ponto em que migrei para a cena individual o motivo por aquilo e todos estarem ali se confundiu entre torcida e carnaval, era o caos sem dono e causa, mesmo, eram todos ali por estarem ali. Como "fantasia", o novo personagem tinha nas mãos uns fios de cabelo que pareciam ter feito parte, algum dia, de uma peruca loura. Era tanta a miséria, tanta daquela certa miséria carnavalesca brasileira, que uma pseudoperuca fazia a diversão barata, comum e piedosa. Sujo, bêbado e miserável, aquele que também observava a situação se abaixou para ver o homem inconsciente. Parecia que queria ajudar, mas a impotência era geral, ninguém entendia o que estava se passando. Dentro da cena, ninguém sabia que aquele homem podia morrer ali em poucos futuros instantes. Volta o amigo e rindo diz que "não tem água não, ele vai é continuar bebendo!" Todos riem como que para se reconfortar e olhando para a garrafa de algum destilado e um copo grande de cerveja, ambos gelados, que o amigo trazia, o homem conseguiu dar um sorriso. O sorriso mais triste que já pude ver ou imaginar. Automaticamente tratou de tomar seus goles, mas a expressão em seu rosto dizia que algo estava errado. A esta altura os coadjuvantes já sumiram do meu alcance sonoro e deixaram de comunicar com o homem, voltaram a conversar ente si e a tomar alguma espécie de rumo. Todos tentavam se alegrar dançando, pulando, gritando ou cantando alguma coisa, já não era mais o massacre da torcida sendo pisoteada por ela mesma, era alguma espécie de carnaval. Único parado ali na borda da cerca: o homem, com o copo na mão, simbolizando o excesso inconsciente, tão estupidamente valorizado. Seu olhar dizia tudo e nada, ao mesmo tempo. Não olhava para mim, olhava para o nada. Inconsciente talvez, ou então simplismente porque tinha a noção de que algo aconteceria com ele, queria não tomar esta consciência. Eu sabia que ficar ali parado e ainda, bebendo alcóol, era algo que o levaria à morte, já tinha entendido de que se tratava de um traumatismo sim - definitivamente. Algo que não havia mais retorno, ele ia morrer. O barulho do povo envolta foi ficando cada vez mais distante, a cena focava cada vez mais o rosto do homem e cada vez mais eu tentava o entender. O homem morreu de impotência e de ingorância. Pobreza, miséria, ignorância e impotência se juntaram ali e mataram alguém e para a minha angústia maior, só eu sabia o que acontecia, desde o começo. Só eu tinha alguma consciência mas, impotente, vi o homem morrer.
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